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Gestão de futebol: a profissionalização pede passagem

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  • Por Pedro Henriques

Ao ingressar no mercado do futebol é muito comum escutar uma série de bordões de quem já habita esse ambiente. Talvez a frase mais reiterada seja “Futebol é diferente de qualquer outro negócio”.

Será que é?
Estamos falando de algo que movimenta muito dinheiro, muitas pessoas, mas, basicamente, depende de investimentos bem feitos e performance dos funcionários. Seu funcionamento é similar ao de uma série de indústrias, então.

É evidente, contudo, que o futebol tem suas peculiaridades, afinal, ninguém é “apaixonado” por outras indústrias (talvez os italianos pela do automobilismo). E aí entra uma outra “verdade” comumente repetida no futebol: nossas gestões não são profissionais, pois são lideradas por “apaixonados”. Ora, não há mal algum num gestor ser apaixonado pelo que faz ou pela empresa onde trabalha. É sonho das grandes corporações ter nos seus consumidores e trabalhadores verdadeiros “defensores da marca”.

O problema do futebol é que ele, muitas vezes, não é gerido profissionalmente. E isso não tem nada a ver com paixão. Os clubes brasileiros, associações civis sem fins lucrativos em sua maioria, tendem a ser presididos por “torcedores abnegados”. Gestores apaixonados que dedicam parte do seu tempo à condução do seu clube do coração.

Devido a isso, os expedientes de muitos clubes passam a funcionar “para valer” no fim da tarde, quando os seus cartolas chegam para despachar após terem se dedicado no horário comercial as suas atividades do dia a dia. Isso porque, incrivelmente, muitos dos dirigentes do futebol brasileiro não são remunerados pelo trabalho que desempenham nos seus clubes e, naturalmente, não podem se dedicar exclusivamente a isso.

Como acreditar numa indústria que movimenta bilhões e cujos líderes são meros abnegados? Pessoas que não tem sequer horário fixo para trabalhar no Clube? Qual a lógica disso?

A profissionalização pede passagem. Os clubes precisam ter metas, métricas. Seus funcionários precisam ter claros os objetivos e serem cobrados pelo seu desempenho. E isso não se restringe aos atletas ou ao departamento de futebol.  E o compromisso deve começar por cima. Os dirigentes precisam ter dedicação integral ao clube e serem devidamente remunerados por isso. Esse caminho, felizmente, já vem sendo trilhado por alguns clubes.

Só que além de dedicação, metas e métricas há muito mais a se fazer para falar em profissionalismo. Não estou sequer falando de compliance, plano de cargos e salários ou planejamento estratégico.

O grande problema é que muitos clubes são geridos com foco nos interesses da “gestão” e não nos interesses da “instituição”. É que, por serem associações, cada gestor tem apenas um mandato (ou dois) para desempenhar e ser avaliado pelo seu trabalho, então, por vezes, privilegiam as suas necessidades imediatas em detrimento do que poderia ser melhor para o futuro do clube.

É aí que mora o perigo.
A vaidade, pecado capital preferido de 9 entre 10 dirigentes de futebol, é o norte de muitas das tomadas de decisões que vemos nessa indústria.

Além disso, há os equívocos decorrentes da necessidade de sobrevivência no curto prazo que fazem com que, muitas vezes, ponha-se em risco os interesses do clube no longo prazo. Para situações assim, normalmente usam a metáfora de “vender o almoço para comprar a janta”.

E o pior de tudo: esses dirigentes – abnegados e apaixonados – são avaliados pelos seus consumidores/empregadores (torcedores e sócios) duas vezes por semana. Afinal, podem passar de “melhores do mundo” ao vencerem um clássico numa quarta-feira a “safados e incompetentes” com uma derrota no domingo.

E nesse sistema “moedor de gente”, os dirigentes precisam ter a frieza e ponderação de tomar as melhores decisões, não apenas para si (sobrevivência do clube no curto prazo), mas também para a instituição para qual trabalham.
Nesse contexto, convém compartilhar uma história.

Em setembro de 2015 um determinado clube disputava a Série B, estando na briga pelo acesso. A luta para ficar entre os 4 primeiros lugares daquele ano estava particularmente acirrada. Os dirigentes estavam a menos de um ano na função e impuseram um choque de realidade financeira, pois o clube passou por anos de desmandos e irresponsabilidades, para dizer o mínimo.

Mas a possibilidade de acesso era real. E um tempero ainda melhorava a situação: o arquirrival regional estava atrás na tabela.

Nesse cenário, esse clube foi procurado pela detentora dos direitos de transmissão: havia uma proposta na mesa. As premissas apresentadas eram simples:

Ampliação do contrato de transmissão por mais 2 anos (prorrogando seu fim de 2018 para 2020); e Redução imediata da remuneração pela transmissão (sendo diminuído, inclusive, o contrato que estava em vigor). Os gestores naturalmente se entreolharam e indagaram por que aceitariam uma proposta que, no longo prazo, traria um claro prejuízo financeiro para o Clube. A resposta estava na ponta da língua do interlocutor: “Porque daremos um adiantamento para vocês de alguns milhões”.

Não eram “luvas”. Era um “adiantamento”. Fossem luvas, um prêmio pela assinatura do contrato, estaríamos falando de um valor adicional. Mas, sendo adiantamento, o que ocorreria na verdade seria uma dedução no pagamento dos anos subsequentes do contrato.

Ou seja, além de ser uma proposta para diminuir o pagamento anual – apenas a título explicativo, digamos que de 10mi para 8mi – o adiantamento faria com q os pagamentos anuais posteriores caíssem ainda mais, digamos que para 6,5mi. Só que, os dirigentes tinham a possibilidade de receber imediatamente uma “bolada”. Milhões de reais a mais para gastar durante uma série B.

Em uma reunião de menos de 1h, o orçamento anual do clube poderia aumentar em praticamente 30%. Com esse dinheiro a luta pelo acesso que estava sendo muito dura, poderia ser radicalmente facilitada.

Convém dizer que não existe verdade absoluta nessa tomada de decisão! Outros elementos que podem não ter sido considerados pelo leitor numa primeira análise, precisam ser avaliados:
01. Não subindo de divisão, quais os prejuízos do clube em bilheteria?

02. E a arrecadação com o sócio torcedor? A previsão era de muita perda?

03. A remuneração decorrente dos direitos de transmissão seriam reduzidas em caso de permanência por mais um ano na série B?

Qual a decisão correta a tomar?

– A proposta foi recusada. Priorizou-se o clube no longo prazo em detrimento de uma maior assunção de risco da gestão que se iniciava naquele ano.

Achou correto?
– Voltemos a 2015. Vamos para novembro daquele ano em que o clube recusou a proposta.
Ele terminou fora do G4 da série B. Não subiu. Para piorar, seu rival local, que recebeu a mesma proposta e aceitou, foi promovido à série A.
Crise política instalada. Protestos na porta do prédio do presidente. Pedidos de que houvesse renúncia partiram de alguns conselheiros.

Continuam com a mesma opinião?

Será que o dirigente do seu clube tomaria essa decisão?
Será que os mesmos dirigentes que a tomaram a repetiriam sabendo do desfecho que ocorreria naquele ano?
Mais: será que seria tomada essa mesma decisão se 2015 fosse um ano eleitoral?

 A resposta, na humilde opinião desse que vos escreve, deveria ser a mesma. Não havendo risco à sobrevivência, sempre deve-se priorizar o melhor para o clube no longo prazo.

Os gestores conseguiram manter seu trabalho e fazer o clube atingir seus demais objetivos ao longo do triênio do seu mandato! O Clube subiu em 2016 e permanece na série A até hoje, inclusive firmando um contrato de direitos de transmissão muito mais interessante do que aquele proposto em setembro de 2015.

Retornando, agora, para 2020 e analisando o que aconteceu com cada um dos clubes da história, parece fácil dizer quem tomou a decisão correta! Enquanto o que recusou a proposta passou por uma dificuldade inicial, mas atingiu seus objetivos; o que aceitou, embora tenha tido sucesso no curto prazo, hoje amarga o segundo ano seguido de série B e tenta superar uma crise política que fez com que passassem 4 presidentes num intervalo de 5 anos…

A conclusão é que, de fato, futebol é muito diferente de outros negócios, mas, sendo gerido com responsabilidade e, principalmente, coerência, é possível se diferenciar e impactar de forma muito positiva no dia a dia e no futuro de um clube.

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Pedro Henriques Moreira Netto

Autor: Pedro Henriques Moreira Netto

  • Formação multidisciplinar nas áreas jurídica e de gestão
  • Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, com especializações em
    Direito Civil e do Consumidor pelo Jus Podivm e Direito Processual Civil pela LFG.
    Sócio do SHMM & Glicério Advogados
  • Gestor Esportivo
  • Vice-Presidente do Esporte Clube Bahia (2015-2017)
  • Diretor Executivo do Esporte Clube Bahia (fev-2018/mar-2020)
  • Gestor de Futebol pela CBF Academy e Gestor Técnico do Futebol pela Universidade
    do Futebol
  • Professor e palestrante em faculdades, pós-graduações e conferências.

Referências Bibliográficas

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